segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Carta de condução. A regra do mais forte

Ficou paraplégico aos seis anos de idade a fazer um pino na praia. Faz este ano 18 e os pais decidiram oferecer-lhe a carta de condução. Mas aquilo que começou por ser uma ideia simples rapidamente se transformou numa aventura de loucos.

Antes de mais, foi preciso encontrar uma escola que oferecesse aulas de condução adaptada. “Oferecesse” é como quem diz, porque logo na primeira busca veio o impacto do preço: 970 euros é quanto custa na Sentido Obrigatório, em Alcabideche.

Como esta era já a décima escola contactada, nada como ir ver de perto. Ao contrário das anteriores, esta não só tem ensino adaptado a deficientes e pessoas com mobilidade reduzida como tem o automóvel – coisa rara. As anteriores, ou não ofereciam o serviço ou não tinham carro adaptado, e teria de ser o aluno a trazer o “seu” automóvel.
À chegada à escola, outro embate: um lanço de escadas a dar para o exterior. Sem rampa para cadeira de rodas. “Mas como é que o aluno entra na escola onde vai ter aulas?”, perguntou a mãe, ansiosa. “Trazemos o aluno ao colo”, respondeu, solícito, o funcionário.

A mãe ainda teve presença de espírito para saber se não seria mais ajuizado da parte da escola gastar dinheiro numa rampa do que num fisioterapeuta que, mais tarde ou mais cedo, terá de curar as maleitas do desgraçado que tiver de carregar alunos para cima e para baixo. “É que o meu filho pesa quase 90 kg. Mais a cadeira de rodas, está bem a ver...”

Não é esta a escola que Martim vai frequentar. Ali próximo, na Parede, uma outra tem carro próprio adaptado e não há barreiras físicas, além de que o preço é mais em conta, 760 euros.

O i contactou a Sentido Obrigatório de Alcabideche, que reconhece que o preço é “um bocadinho puxado” e esclarece que tem uma plataforma elevatória para ajudar, embora admita que o edifício não é o ideal para estas situações, “mas já era assim quando para aqui viemos”.

A lei não obriga as escolas de condução com ensino adaptado a ter automóvel próprio. Mas obriga, desde Agosto de 2006, a que os edifícios abertos ao público cumpram o regime das acessibilidades, dando acesso a deficientes ou pessoas com necessidades especiais.

O Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) “desconhece a existência de eventual discriminação de candidatos com mobilidade reduzida”, mas o i foi encontrar muitas histórias de gente que se sente marginalizada, quanto mais não seja por muitas das instalações não possuírem os requisitos que vêm na lei.

A portaria n.o 185/2015, publicada no Diário da República a 23 de Junho último, tem em conta as especificidades dos edifícios, desde o acesso à escola de condução às instalações sanitárias, passando pelas áreas de circulação no interior. A questão é que, muitas vezes, estas condições não se verificam e não existe quem fiscalize.
Depois há coisas que teimam em não mudar. Transportar alunos ao colo é uma prática comum e já tem diversos anos. Mónica Rodrigues que o diga: era o pai que a “carregava” pelas escadas para a sala de aulas. Um pormenor no meio da odisseia que foi tirar a carta, já em 2003.

Mónica esqueceu-se das chaves de casa e, como não tinha dinheiro para pagar aos bombeiros para lhe abrirem a porta, decidiu passar da casa dos vizinhos para a sua, pela janela. Coisas de miúdos. Tinha 18 anos, morava num segundo andar e estatelou-se cá em baixo. Ficou paraplégica.

Se ter carta de condução é o sonho de qualquer rapaz ou rapariga quando atinge a maioridade, para alguém numa cadeira de rodas é uma espécie de grito do Ipiranga, a proclamação da independência. Mas em caso de deficiência há uma palavra a ter em mente: resiliência.

Mónica vive em Almada, no Laranjeiro, mas teve de vir tirar a carta a Lisboa e “demorou a encontrar uma escola de condução com ensino adaptado”. Este foi só o primeiro entrave, depois vieram outros. Na encomenda do carro, na contratação do seguro, na papelada para as isenções fiscais.

O carro foi escolhido e encomendado à Fiat. Demorou tanto tempo a chegar que, entretanto, mudou o imposto automóvel – deixou de incidir sobre a cilindrada e passou a incidir sobre as emissões de CO2 – e o modelo indicado já tinha sido descontinuado entretanto.

Para ter direito a isenção fiscal, Mónica teve ainda de apresentar um atestado médico, além de se sujeitar a uma nova junta médica, que lhe atestou um “grau da desvalorização da deficiência de 80%”. Esta papelada tem de ser entregue na alfândega para o automóvel ficar livre de imposto: “importado ao abrigo do art.o 54.o do CISV Reg. Deficientes”, fica para sempre registado nos documentos. Novo carro, novo procedimento.

Apesar de isenta do imposto único de circulação (IUC), Mónica, como outros deficientes com carro, tem de se deslocar todos os anos a uma secção de Finanças para levantar o respectivo comprovativo. Tendo em conta tratar-se de pessoas com mobilidade reduzida, esta não é a solução mais fácil.

Diogo Barroso, que tem a doença de Charcot-Marie-Tooth, uma espécie de esclerose lateral amiotrófica “não tão severa e não fatal”, já teve alguns aborrecimentos com este processo do IUC. Tem 22 anos, estuda na Faculdade de Engenharia do Porto e tirou a carta há quatro. “Curiosamente, tenho de afirmar e provar que estou isento. Não percebo porque não consta de uma base de dados e já me aconteceu apresentarem-me o imposto para pagar”, conta.

Mas, apesar de tudo, pode considerar--se um sortudo, pois encontrou uma escola ao pé de casa, a Grande Prémio, em Rio Tinto, Gondomar, onde pôde tirar a carta e que tinha não só carro adaptado, como uma oficina própria que vai adaptando o automóvel às necessidades do aluno. Tudo por 750 euros, menos do que os 970 cobrados pela Sentido Obrigatório ou que os 900 cobrados pela MGA, um grupo que tem diversas escolas na região Centro do país (como Coimbra, Oliveira do Hospital ou Figueira da Foz).

Osvaldo Gomes é tetraplégico e não teve a mesma sorte. É de Almada e acabou por ter de ir tirar a carta ao Porto. Tem 34 anos e há 12 sofreu um acidente de carro, à saída do quartel onde cumpria serviço militar obrigatório. Para o amigo que lhe deu boleia, o despiste foi fatal.

No Porto pagou cerca de 750 euros, mas como teve de ficar hospedado numa pensão, incluindo alimentação, a carta de condução custou-lhe perto de três mil euros. Mesmo assim, o edifício onde teria de realizar o exame de código tinha escadas e difíceis acessos, sobretudo para um tetraplégico com quase dois metros de altura, pelo que “a alternativa foi marcar o exame nas instalações do próprio IMT no Porto”, lembra.

O processo terminou em Fevereiro e Osvaldo espera não demorar muito até ter carro. O automóvel que escolheu custa 20 mil euros, mas as adaptações de que necessita custam 36 mil. A alternativa seria uma carrinha, para entrar de lado, mas as desvantagens são inúmeras. “Estou a aguardar para saber se a adaptação do automóvel é comparticipada, ou através do Centro de Emprego (para trabalhadores) ou do Instituto de Reabilitação e Integração Social (como estudante)”.

De qualquer maneira, precisará de ser avaliado por uma junta médica para obter um atestado de incapacidade específico, necessário quer para o financiamento, quer para a compra do veículo.

Enquanto isso, todos os dias se desloca de Almada para o ISCTE, no campus da Cidade Universitária de Lisboa, utilizando os transportes públicos: do Laranjeiro apanha o metro para Corroios, de Corroios o comboio para Entrecampos, e daí a sua cadeira de rodas até à faculdade, onde estuda Psicologia.

As peripécias são mais do que muitas. A cadeira onde se desloca foi-lhe atribuída pelo Exército, que lhe paga uma pensão. Mas volta e meia tem de ir ao mecânico, ora por um pneu furado, ora por uma roda empenada. “As acessibilidades são difíceis e os transportes não estão preparados para cadeiras de rodas. Já cheguei a ficar entalado nas portas do metro e as pessoas, aflitas e para tentar ajudar, tiveram de me puxar pela parte de baixo da cadeira, onde as rodas mais pequenas ficaram presas, deixando-a toda empenada.”

Uma cadeira de rodas não é uma coisa barata e, como um automóvel, precisa de manutenção. Também como um automóvel, o preço depende da gama: há os Suzuki e os Ferrari. A cadeira de Mónica Rodrigues custou 2500 euros e a almofada anti-escaras 300 (mais do que a adaptação do carro, que custou 200 euros).

Os seguros também não são um pormenor. O de Mónica, contra terceiros, custa 470 euros. Mas não conseguiu que lho fizessem logo à primeira. “Não foi fácil encontrar uma companhia que quisesse assumir o risco e a Zurich até se recusou.” E esta não é a única chatice: “Em caso de acidente, é raro as seguradoras terem um carro de substituição adaptado e são poucas as que pagam as deslocações de táxi.” Por isso, é preciso ter atenção aos contratos.

Esta é uma questão com que Joana Coutinho ainda não se deparou. E, até ver, está nas suas sete quintas. Quando nasceu foi-lhe diagnosticada paralisia cerebral hemiparésia direita, o que significa que teve uma lesão permanente no lado esquerdo do cérebro que lhe afectou o lado direito do corpo. À mãe, os médicos disseram que o mais provável era nunca conseguir fazer uma vida independente. Enganaram-se.

“Consegui colmatar as principais dificuldades com a ajuda de fisioterapeutas fantásticos, dos nove meses aos cinco anos, na Fundação Calouste Gulbenkian”, diz. O lado negativo de ter evoluído tão bem é que as sessões de fisioterapia tiveram de parar para a fundação se dedicar a casos mais graves. Desde então, a única actividade física com que teve contacto foram as aulas de Educação Física na escola pública, “manifestamente insuficientes para as minhas necessidades”.

Agora tem 27 anos e está em vias de fazer o exame de condução. “Passei no código à primeira e estou a ter aulas num carro adaptado da escola, a Radical, em Lisboa. Em Almada, onde moro, havia apenas uma escola com carro adaptado, que anda de norte a sul do país.”

Joana, que não anda numa cadeira de rodas e pode subir escadas, já tinha tentado tirar a carta de condução e chegou a frequentar algumas aulas de código, mas acabou por desistir. “Este ano estou mesmo quase a ter independência a nível de transportes públicos, o que, quando se mora na Margem Sul, dá muito jeito”, confessa.

A carta deverá chegar no Natal e o resto virá depois. O resto é o carro adaptado próprio – “já pensei nas adaptações: mudanças automáticas e inversão do pedal” – , os dísticos de deficiente e o lugar de estacionamento, entre tantas outras coisas.

Os entrevistados do i não percebem por que motivo têm de renovar os dísticos de cinco em cinco anos, por exemplo, se estes dizem respeito à pessoa e não à viatura. E o automóvel, está visto, já dá muito que pensar e que fazer. Até para estar parado (já lá vamos).

Joaquim Roque, 56 anos, vive no Bombarral e é paraplégico, resultado de uma poliomielite (paralisia infantil). Tirou a carta de condução em 1992, “já lá vão uns aninhos”, mas há coisas que se mantém inalteradas de lá para cá.
Apesar de ser técnico superior da Câmara Municipal do Bombarral, continua a ter problemas de estacionamento. Não que não lhe tenha sido atribuído um espaço para parquear o carro, mas porque este está muitas vezes ocupado por terceiros.

Se encontrar uma escola com carro adaptado era ainda mais difícil há 23 anos, ter o lugar de estacionamento reservado para deficientes ocupado continua a ser tão fácil hoje como antes.

“Quando quis tirar a carta, tive de comprar carro e mandar adaptá-lo para ter aulas de condução. Teve de haver compreensão da escola, a Cordeiro, no Bombarral. Fui o primeiro deficiente que tirou ali a carta e isso causou alguma confusão, mesmo aos instrutores. O carro não tinha comandos para o instrutor, não foi pacífico. A maior parte das aulas foram com o dono da escola e o processo foi correndo”, recorda. “Mais complicado foi o examinador, que ficou renitente – para ser simpático e não usar um termo mais áspero. Aproximou-se do carro e, quando viu que era um deficiente, franziu a testa e saiu, dizendo que tinha de saber pormenores.”

O seguro também não foi fácil. “Tive problemas a fazer os seguros dos carros. A questão é que, quando se quer seguro de danos próprios, querem fazer pelo valor comercial do automóvel e não pelo valor que custou”, explica.
Estas são as questões ultrapassadas, mas depois há as tais que parece que vieram para ficar. Mesmo sendo funcionário municipal e apesar de ter lugar reservado para deficientes, com uma placa que sinaliza bem o local, “até vereadores chegam a estacionar no meu lugar”.

Joaquim chegou a inventar autocolantes “para colar no carro de quem estacionava no meu lugar, a dizer coisas como: ‘O senhor está em lugar reservado, a infringir a lei e retirar-me um direito. Agradecia educação.’ Mas continua a acontecer e já cheguei a ter de chamar a GNR, que respondeu que tem mais que fazer.” É também para isto que a Joana, como o Martim e tantos outros, vão ter de se preparar.

Fátima Buchadas resume tudo: “Infelizmente, é o país que temos: poucas ajudas e muitos obstáculos, o que é triste, porque também somos seres humanos e temos direito à vida.” A expressão é de desalento, mas Fátima, que esteve quase para desistir de tirar a carta de condução, acabou por encontrar coragem para continuar.

“Só havia duas escolas, uma no rés-do-chão, outra num primeiro andar. Depois não tinham carro adaptado, só em Lisboa, e foi quando pensei desistir.” É de Samora Correia, onde acabou por fazer o código. Depois “tirei a condução em Alverca, mas quando andava nas aulas arranjei emprego e aí as coisas complicaram-se, porque era mais cansativo. Ia às aulas de condução das 8h às 9h30 e depois ia trabalhar. Mas consegui, e ao fim de um mês fui a exame e passei”.

Fátima, como tantos, teve a ajuda dos pais. Mas um dos motivos por que estas pessoas precisam de carta é para se tornarem auto-suficientes, o que às vezes é difícil.

Ao contrário da cadeira de rodas, o automóvel precisa de combustível para andar. E isto pode ser mais uma dor de cabeça. De tal forma que, outro dia, Mónica acabou por falar “com o alemão responsável pelo Jumbo de Almada”, para explicar a dificuldade que tinha em abastecer o seu carro e a chatice e vergonha que é estar sempre dependente da ajuda de terceiros. “Respondeu-me que são poucos os casos e não justificam mais uma pessoa e mais um ordenado.”

De acordo com o último censo (2011), cerca de 17,4% das pessoas com idades entre os 15 e os 64 anos têm, pelo menos, uma dificuldade na realização de actividades básicas, ou seja, 1 234 000 cidadãos. Se é verdade que neste número não estão apenas deficientes e pessoas com mobilidade reduzida, muito menos aqueles que, nestas condições, possuem carta de condução, também é um facto que foi para garantir os direitos destes cidadãos que se fez determinada legislação.

A lei obriga o exterior dos edifícios públicos a cumprir algumas regras. Por exemplo, os lugares reservados para estacionamento devem ser suficientemente largos para permitir movimentar uma cadeira de rodas e o ideal é que a distância entre o estacionamento sinalizado e a entrada do edifício seja entre 10 e 15 metros. Os passeios não podem constituir um obstáculo e há que rebaixá-los com rampas, sempre que necessário. Nos acessos pedonais, o pavimento irregular, com buracos ou pedras e gravilhas soltas, é um entrave a evitar.

No entanto, muito pouco do que diz a lei é cumprido, como provam os testemunhos. Quando é assim, “como se pode esperar que o que não está na lei e é apenas do senso comum seja feito?”, perguntam. E Mónica lembra, a propósito da fisioterapia e da carta, que “nunca ninguém me ensinou a entrar e sair de uma cadeira de rodas para o carro, nem em Alcoitão nem na escola de condução”. Onde a carta pode custar 970 euros, quer a escola fique num rés-do-chão ou num primeiro andar e quer tenha ou não carro adaptado.

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